Por: Marcelo Sabino
Professor de História Contemporânea - UNIR
O título acima foi tomado, em parte, de empréstimo de uma das mais significativas obras do historiador Eric Hobsbawm (1998, p. 47). Neste livro, o autor assim se refere sobre a tarefa do historiador e sobre a História:
“Admito que, na prática, a maior parte do que a história pode nos dizer sobre as sociedades contemporâneas baseia-se em uma combinação entre experiência histórica e perspectiva histórica. É tarefa dos historiadores saber consideravelmente mais sobre o passado do que as outras pessoas, e não podem ser bons historiadores a menos que tenham aprendido, com ou sem teoria, a reconhecer semelhanças e diferenças”.
Embora seja eu apenas um professor de História e aprendiz de historiador, com graduação em História e mestrado nesta mesma área do conhecimento humano, penso saber minimamente reconhecer semelhanças e diferenças além de saber sobre o passado - de forma acanhada, mas um pouco mais do que aqueles que possuem formação em outras áreas do conhecimento. Ainda é dessa pequena condição de aprendiz de Historiador que discordo com o argumento de Hobsbawm de que o historiador deva, “com ou sem teoria”, saber reconhecer semelhanças e diferenças. Deve ter ele (o historiador ou aprendiz) o conhecimento mínimo da teoria sim, pois só assim estará apto a fazer uma crítica qualificada sobre a História.
Assim não posso furtar-me de opinar e fazer críticas, perguntas e recomendações teóricas para os administradores e colaboradores de um site intitulado documentariounir.com.br que há algum tempo vem tentando fazer a “verdadeira história da UNIR”; mais especificamente sobre o uso indefinido e inapropriado que os administradores e colaboradores deste site estão a fazer desta importante e muito cara área do conhecimento intitulada História.
Pergunto: Quem é o historiador responsável por este site? Se é que existe algum. Se existe, fico decepcionado e coloco seu conhecimento sobre o fazer histórico em cheque e me ponho à disposição para discutir a historiografia da História com ele.
Há muito tempo, desde o século XIX, para ser mais preciso, não se escreve História com base somente em documentos oficiais, com uma linha do tempo, com herois e de forma tão tendenciosa quanto o que vi e li neste pretensioso e duvidoso site chamado documentariounir.com.br.
Leopoldo Von Hanke, historiador do século XIX, foi um dos historiadores responsáveis por uma forma de fazer História, chamada posteriormente de positivista. Apostou e investiu numa escrita da História comprometida com herois, datas e o fortalecimento e consolidação do Estado-nação. É deste período o fortalecimento e o surgimento, propriamente dito da História como uma disciplina. Percebo a semelhança dessa forma (já ultrapassada) de escrever a História, nas linhas “tortas” deste sítio eletrônico.
Constam ali anos aleatórios, parte de documentos oficiais, parte de uma História da Universidade Federal de Rondônia. Uma escrita tendenciosa, comprometida com qualquer outra coisa, menos a boa e sadia tarefa do historiador que é mostrar possibilidades, relações e críticas sobre o passado, suas semelhanças e diferenças com o presente e a necessária crítica qualificada, como nos lembra Hobsbawm (1998).
A forma como está disposta a “verdade” sobre o passado e a “história da UNIR" neste site é muito semelhante ao modo comprometido da História Positivista. A História hankiana estava comprometida com a formação de um Estado Nacional, uma história tendenciosa que considerava apenas os documentos oficiais (aqueles produzidos por um aparato burocrático) como fonte máxima e única portadora da “verdade”. Assim eu pergunto: com quem está comprometido este site? Quais os interesses que ele esconde? Por que somente agora, às vésperas de um processo de escolha de novo Reitor ele se mostra?
Por muito tempo, países utilizaram-se desse expediente para propagar a sua “verdade”, para a consolidação e, em alguns casos, a construção de uma História Nacional que interessava a um determinado grupo, seja para garantir a hegemonia de uma determinada classe ou segmento social, seja para difundir suas nada amistosas “verdades”. Percebo semelhanças dessa forma ultrapassada de escrever História com a forma apresentada por este infeliz site.
Poucos - e eu arriscaria que nenhum - historiadores profissionais capacitados, que frequentaram curso de graduação, mestrado e doutorado nesta importante área do conhecimento humano se arvoram em defender uma História hankiana e positivista portadora da “verdade” sobre o passado (e o presente), pautada numa linha reta do tempo, com datas definidas de forma aleatória, com herois salvadores da pátria, com inimigos do Estado. E mais: com fontes que curiosamente foram produzidas por um braço da burocracia deste mesmo Estado.
Escrever, pesquisar e fazer história assim é no mínimo temerário e pouco, muito pouco responsável. É escrever estórias. Não estou aqui a colocar todo o conhecimento produzido no século XIX no lixo. Saibamos, e para isso serve a História feita com responsabilidade e com método, que este método serviu a um propósito e que era o conhecimento feito no século citado e que, portanto, merece nosso respeito. Não se pode dizer o mesmo da forma como se apresenta este site-documentário.
Estou a escrever tudo isso porque sou historiador, com leituras, pesquisas e conhecimentos mínimos sobre a História - mas capazes de reconhecer uma História escrita nos moldes do século XIX. É contra essa prática que segue minha crítica e desabafo.
Estamos no século XXI e há muito esta Ciência Humana, a História, recebeu novas versões, sofreu contribuições, tenta recuperar-se da mácula de sua origem vinculada ao Estado-nação autoritário e tendencioso. Muitos foram os estudiosos que dedicaram vidas e esforços para tornar a História uma área do conhecimento mais humana, mais responsável, livre de amarras e interesses outros que não o compromisso com o saber e o livre exercício da razão e da crítica qualificada sobre a sociedade contemporânea. Não o passado pelo passado, sem métodos, sem compromissos com a sociedade, com a crítica, com a razão. Neste sentido, escreve LE GOFF (2003, p. 25):
O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história. Isto é verdadeiro em dois sentidos. Primeiro, porque o progresso dos métodos e das técnicas permite pensar que uma parte importante dos documentos do passado esteja ainda por se descobrir.
Há que se reconhecer as diferenças. Há que se reconhecer os novos métodos e técnicas do fazer histórico, para isso estamos a estudar e a pesquisar sobre a História. Por favor respeite-nos, por favor não se aventure a fazer aquilo que outros profissionais estão há anos estudando e para o que estão aptos. Acaso você aceitaria ser operado por algum outro profissional que não um médico habilitado para tal cirurgia? Por favor, não estou a dizer que não deva estudar sobre o passado, mas se pretende dar visibilidade a esse estudo, que o faça com responsabilidade, que consulte um historiador, que se atualize, que leia, que pesquise, que saiba que existem métodos e técnicas atualizadas para o “fazer Histórico”.
Temos, hoje, por exemplo, o advento da Nova História que, além dos documentos oficiais trabalha com a oralidade, com testemunhos, com documentos produzidos por pessoas comuns, cartas, agendas, objetos, obras, construções. Tudo de modo a permitir “ouvir” todas as partes envolvidas nos fatos e objetos estudados. Não apenas partes, frações descontextualizadas, inacabadas, arrazoadas e colocadas como única verdade.
Desculpem-me, mas arvorar-se no direito de fazer uma pretensa “verdadeira” história da Universidade Federal de Rondônia por meio de um site cuja fonte máxima parecem ser tão somente partes de documentos oficiais é no mínimo constrangedor, para não dizer desrespeitoso com todos aqueles que estudam e pesquisam sobre História. E ao dar visibilidade colocando-o num site de acesso público, seus administradores devem aceitar críticas e sugestões, que é o que estou a fazer.
Assim eu peço, por favor, mais respeito com tão cara e importante área do conhecimento como o é a História. E não estou aqui a impedir que se critique ou a negar a participação de todos no “fazer histórico”. Ocorre que estamos numa Academia em que o mínimo que se exige é respeito com a área de conhecimento alheio.
Por favor, ao utilizarem da História, o façam com responsabilidade e tenham a decência e o caráter de ao menos consultar os profissionais desta área de que dispõe a própria UNIR. Tenham o mínimo de espírito acadêmico para mostrar e indicar onde estão as fontes, quais os métodos utilizados.
Fico triste e de fato muito, mais muito aborrecido quando qualquer um se arvora na intenção de fazer uma “verdadeira História”, seja da UNIR, seja do que for. Especialmente quando este alguém sequer frequentou uma disciplina acadêmica que o habilite minimamente para tal, ou ao menos o atualize sobre o fazer História, pois se assim fosse, não seriam cometidos tantos equívocos teóricos e metodológicos como os que são percebidos no malfadado documentáriounir.com.br.
Desculpem-me o tom deste desabafo, mas não consegui calar-me diante da pretensão tosca de fazer da História, tudo aquilo que há séculos muitos estudiosos desta área tentaram desconstruir.
Há muito sabemos que “verdades” são construídas. Há muito sabemos (estudiosos da História) que foram trocados os artigos definidos o e a pelos indefinidos um e uma pois que o que se oferece, o que o historiador comprometido com o método, comprometido com a Academia, com o saber e a Ciência História sabe que se oferece, é que não é possível chegar na “verdade”. A História, tal como ela aconteceu de fato, é inatingível, não há resgates em História: há conjecturas, há interpretações. Há leituras possíveis, há possibilidades, há caminhos. São apenas possíveis interpretações com base em métodos e teorias. Assim pergunto: Acaso leram os documentos oficiais e os processos citados no site até o fim? Acaso fizeram as necessárias consultas a outras fontes como bibliografias, testemunhos (quando possível)? Qual o método histórico utilizado neste site?
Ao que parece, é o método positivista, de Hanke. Informo-lhes que este método há muito foi abandonado (ao final segue uma pequena bibliografia para, se acaso quiserem, ler para fazer de forma mínima uma História da UNIR menos positivista e menos tendenciosa), mais atual e próxima do que os historiadores vêm fazendo, pesquisando e estudando.
Por favor, respeito. Por favor, não façam troça com a História. Por favor, refiram-se a ela com no mínimo um pouco de dignidade e humildade. Por favor, não ofendam os olhos e a inteligência daqueles que estudam e levam a História a sério. Por favor, não brinquem com tão importante área do conhecimento como acredito e defendo ser a História. Por favor respeitem a História e não façam dela apenas estória.
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTAS:
BRAUDEL, Fernand. (2009). Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva.
BURKE, Peter. (2002). História e teoria social. São Paulo: Editora da UNESP.
___________. (1992). A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP.
CARDOSO, Ciro F. (2002). Os Métodos da história. Rio de Janeiro: Graal.
HOBSBAWM, Eric. (1998). Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras.
LE GOFF, Jacques. (2003). História e Memória. Campinas/SP: Editora da UNICAMP.
LE GOFF, J. CHARTIER,R. e REVEL, J. (Orgs.).(2005). A História nova. São Paulo: Martins Fontes.
MALERBA, Jurandir (Org.).(2010). Lições de história: o caminho da ciência ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: FGV e EdiPUCRS.
4 comentários:
Acho que o pessoal do DocumentárioUnir presta um bom serviço à nossa gente: recolhe materiais, um a um, pinçados por um momento, e publica-o.
É parcial mas não é falso!
Cabe a cada qual enviar o seu pedaço da História, que, diga-se, é parcial mas não está sendo construída pelo Estado, ao contrário: Eu mesmo a faria muito melhor, se quisesse e se me fosse dado tempo e interesse maior do o que trago comigo agora.
Claro é o seguinte: que muitos não quererão que a coisa exista porque a verdade da fonte primária desinteressa às vezes.
Não cabe porém é apagar, fingir que não há História... porque alguém quer trazer à vista de todos alguns documentos chocantes.
Isto sim seria seguir uma História Hankiana!
Caro Sabino, não sejamos ingênuos!!! No seu caso talvez porque seja recente aqui na Unir, mas quanto a mim que estou aqui há vinte e quatro anos posso fazer uma boa leitura do que ocorre. Mesmo porque tenho vivências passadas e portanto conheço relativamente o passado desse povo aqui na Unir. Pra início de conversa, é preciso que tenhamos claro que a queda do reitor não se deu exatamente por conta da greve, mas sim devido à entrevista do titular do ministério público estadual no programa Fantástico. Só que se trata do MP estadual, a esfera da Unir é federal. Então, posto o sujeito pra correr os interesses dos líderes do movimento vieram à tona. Claro que nunca pus e não ponho a mão no fogo por muitos dos que fizeram o movimento porque justamente já os conheço de outros carnavais. Agora, algo de fato tinha que ser feito. No balanço, percebemos que o combate continua e deve continuar. Há muito a ser apurado e divulgado. Abraço. Carlos Santos
Muito bem, Marcelo! Fiquei muito feliz ao ler seu texto. É lamentável que na academia tenha pessoas capazes de baixar tanto o nível a ponto de fazer sites como esse que voce combateu. Me lembrou daquele site dos defensores do Januário durante a greve que postava um monte de mentiras e bobagens contra defendiam a UNIR. Não é necessário baixar o nível do debate. Não se ganha eleições com agressões, mas com proposta e uma história coerente e isso não precisa ser propagandeada, todos nós sabemos quem é quem na UNIR. Eu estou na UNIR desde 1990 e conheço bem essa história.
Concordo plenamente contigo. É uma ofensa aos historiadores e a todas as pessoas que conhecem de fato a história da UNIR. Os oportunistas fazem de tudo pelo poder...
Seu texto está excelente e representa a voz de dezenas de professores que estão indignados diante dessa baixaria eleitoreira. Arghhhhh !!!
Caro Marcelo,
Dessa forma estaremos consolidando o Fórum,contribuindo para uma discussão mais qualificada.
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